quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Narrativa Imagística

Outra forma de narrativa é por meio de imagens. A imagem sempre foi recurso largamente utilizado na literatura, poesia e letra de música de todos os tempos. Imagens também contam histórias, possibilitam reflexões, desdobram sentimentos, mexem de diversas formas com os sentidos. E ainda podem ser fortes aliadas da linguagem subjetiva, pois a imagem é, é algo em si mesmo, antes de qualquer cultura, de qualquer significado ou valoração, simplesmente está ali. Desse modo, o valor é dado por quem a vê e cada um pode interpretá-la da forma que quiser, de acordo com seus próprios valores, histórias de vida, cultura e outras conexões cognitivas. Mas uma coisa é certa: toda imagem, ou quase toda, carrega significado e ou valor. Na fotografia há um jargão recorrente; e não é a toa: "uma boa imagem diz mais que mil palavras".

Conforme já vimos, um dos responsáveis pela disseminação do recurso de imagens na textualidade moderna foi o poeta inglês Ezra Pound e seu movimento, batizado de Imagismo. Mas havia no mundo, naquele momento, diversas outras tendências concorrendo para o fortalecimento do aspecto visual na produção textual. É num período anterior, razoavelmente próximo, que o jornalismo mundial dá um grande salto, com a invenção do telégrafo, em 1844, quando as notícias passam a circular muito mais rapidamente. Portanto, é de se esperar que a literatura comece a absorver esse legado do relato puro e simples, supostamente (e apenas supostamente) isento, noticioso e mais imagístico, por assim dizer. No fim do século XIX, a invenção do cinematógrafo, pelos Irmãos Lumière, na década de 1920 surge o rádio, nos anos 1940 conhecemos a televisão, aspectos que certamente aceleram ainda mais o apelo visual na mentalidade das pessoas.

A narrativa imagística, portanto, pode ser ótima causadora de interesse, pois além das qualidades que carrega em si mesma e de todo o aparato tecnológico que a impulsionou, é ainda potencializada por algo irrefutável: somos, prioritariamente, seres visuais. 

Talvez não seja mais necessário pontuar, mas, conforme as outras ferramentas observadas anteriormente, com a narrativa imagística não poderia ser diferente: podemos usá-la ao longo de toda uma letra, em uma seção, estrofe ou apenas num único verso, enfim, a qualquer momento.

Vejamos este primeiro exemplo:

Vilarejo (Marisa Monte, Pedro Baby, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes)

Há um vilarejo ali, onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão 
Pra acalmar o coração, lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Paraiso se mudou para lá
Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal 
Peitos fartos, filhos fortes Sonho semeando o mundo real

Toda gente cabe lá, ­Palestina, Shangri-lá
Vem andar e voa, vem andar e voa, vem andar e voa
Lá o tempo esperalá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar
Em todas as mesas, pão, flores enfeitando

Os caminhos, os vestidosos destinos
E essa canção
Tem um verdadeiro amor
Para quando você for

Percebemos acima a utilização de muitas imagens:

1 – Há um vilarejo ali.
2 – Na varanda, quem descansa, vê o horizonte deitar no chão
3 - Por cima das casas, cal
4 - Frutas em qualquer quintal
5 - Peitos fartos, filhos fortes
6 - Lá é primavera
7 - Portas e janelas ficam sempre abertas
8 - Em todas as mesas, pão
9 - Flores enfeitando os caminhos, os vestidos...

É uma letra construída a partir dessas imagens. E que por si só podem conter muitas significações: falam de um lugar tranqüilo, silencioso, de baixo estresse, cheio de vida, cores, belezas, próximo à natureza, com fartura de alimentos, pessoas crescendo e vivendo saudáveis, em relações cordiais, generosas, sem problemas de superpopulação ou poluição. 
É, portanto, o oposto da vida moderna.
  
Essas imagens tendem a trazer algum descanso para a alma. Mas podem levar a reflexões sobre a forma como vivemos. O videoclip da música, por exemplo, é todo construído a partir de cenas de catástrofes, guerras, desgraças e outras misérias humanas, imagens essencialmente opostas às mostradas na letra. É o que chamamos de “signos invisíveis”, assunto que veremos mais à frente.

E o texto ainda mistura outros importantes elementos. O mais recorrente deles é a deconstrução (desconstrução e reconstrução):

1 – “quem descansa vê o horizonte deitar no chão”
2 – “Lá o mundo tem razão”
3 – “Paraiso se mudou para lá”
4 – “Sonho semeando o mundo real”
5 – “Lá o tempo espera”

Há também jogos de palavras:

“Vem andar e voa
Vem andar e voa
Vem andar e voa”

...que brincam nos ouvidos e no corpo, trazem sensações rítmicas.

E a narrativa relacional:

“Tem um verdadeiro amor para quando você for”

Até então, não havia essa outra pessoa para quem o narrador estava se dirigindo. E quando entra esse interlocutor, fala-se de afeto. E, claro, isso tende a trazer ainda mais afetividade para o texto, aproxima o ouvinte, estabelece mais cumplicidade. Temos aí, portanto, um texto preponderantemente de imagens, permeado por deconstruções, jogos de palavras e narrativa relacional. São esses os principais elementos utilizados.

Outras imagens:

“Estou enfiado na lama” (Manguetown - Chico Science/Lucio Maia/ Dengue)

Raps e Hippies e roupas rasgadas, ouço acentos, palavras largadas pelas calçadas sem arquiteto, casas montadas, estranho projeto, beira de mangue, alto de morro, pelas marquises, debaixo do esporro...” (Tupi - Pedro Luís)


“No meio da multidão ela brilhou pra mim...” (Nega - Marcelo D2)

“...Por meus passos velozes, vapores, suores, sotaques, antenas, Antunes, Stones
Por meus passos ligeiros, graffitis, mau cheiro, não fosse por você, eu não notava essa cidade” (Graffitis - Adriana Calcanhotto)

 “São 7 horas da manhã, vejo Cristo da janela / O sol já apagou sua luz e o povo lá embaixo espera / Nas filas dos pontos de ônibus, procurando aonde ir...” (Um Trem Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)


“Da janela lateral do quarto de dormir, vejo uma igreja, um sinal de glória / Vejo um muro branco e um vôo, pássaro, vejo uma grade, um velho sinal...” (Paisagem na Janela  - Fernando Brandt / Lô Borges)

”Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana...”

“Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana"

"O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto parece música urbana

E a matilha de crianças sujas no meio da rua - música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana"


"Os uniformes, os cartazes, os cinemas e os lares / Nas favelas, coberturas, quase todos os lugares...” (trechos de Música Urbana 2 - Renato Russo)


No último exemplo temos uma fusão de imagens concretas com significados abstratos, as imagens são nítidas, reais, cotidianas, tangíveis, mas estão ligadas a uma abstração comum: a “música urbana”, que tem significados alegóricos e pode representar várias coisas, de modo abstrato.

Vejamos também essas imagens abstratas; e em diversos casos, também metafóricas:

“Coqueiros varam varandas no Empire State” (A Ponte – Lenine / Lula Queiroga)

“...pôs meu frágil coração na cruz, no teu penoso altar particular” / “Tão longe quanto eu possa ver de mim, onde ancoraste teu veleiro em flor” (trechos de Altar Particular - Maria Gadu)

 “Num trem pras estrelas...” (Um Trem Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)

“O mundo todo reside dentro, em mim” (Onde Ir – Vanessa da Mata)

 “Bateu de frente com o trem social” (Cagaço  - Herbert Vianna / Bi Ribeiro)


Magno Mello

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