Outra forma de narrativa é por meio de imagens. A imagem sempre
foi recurso largamente utilizado na literatura, poesia e letra de música de
todos os tempos. Imagens também contam histórias, possibilitam reflexões,
desdobram sentimentos, mexem de diversas formas com os sentidos. E ainda podem
ser fortes aliadas da linguagem subjetiva, pois a imagem é, é algo em si mesmo, antes de qualquer
cultura, de qualquer significado ou valoração, simplesmente está ali. Desse
modo, o valor é dado por quem a vê e cada um pode interpretá-la da forma que
quiser, de acordo com seus próprios valores, histórias de vida, cultura e
outras conexões cognitivas. Mas uma coisa é certa: toda imagem, ou quase toda,
carrega significado e ou valor. Na fotografia há um jargão recorrente; e não é
a toa: "uma boa imagem diz mais que mil palavras".
A
narrativa imagística, portanto, pode ser ótima causadora de interesse, pois
além das qualidades que carrega em si mesma e de todo o aparato tecnológico que
a impulsionou, é ainda potencializada por algo irrefutável: somos,
prioritariamente, seres visuais.
Talvez
não seja mais necessário pontuar, mas, conforme as outras ferramentas
observadas anteriormente, com a narrativa imagística não poderia ser diferente:
podemos usá-la ao longo de toda uma letra, em uma seção, estrofe ou apenas num único verso, enfim, a qualquer momento.
Vilarejo (Marisa Monte, Pedro Baby, Carlinhos
Brown e Arnaldo Antunes)
Há um vilarejo ali, onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão
Vê o horizonte deitar no chão
Pra acalmar o coração, lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Terra de heróis, lares de mãe
Paraiso
se mudou para lá
Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal
Peitos fartos, filhos fortes Sonho semeando o mundo real
Toda gente cabe lá, Palestina, Shangri-lá
Vem andar e voa, vem andar e voa, vem andar e voa
Lá o tempo espera, lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar
Em todas as mesas, pão, flores enfeitando
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar
Em todas as mesas, pão, flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção
Tem um verdadeiro amor
Para quando você for
1 – Há
um vilarejo ali.
2 – Na
varanda, quem descansa, vê o horizonte deitar no chão
3 -
Por cima das casas, cal
4 -
Frutas em qualquer quintal
5 -
Peitos fartos, filhos fortes
6 - Lá
é primavera
7 -
Portas e janelas ficam sempre abertas
8 - Em
todas as mesas, pão
9 -
Flores enfeitando os caminhos, os vestidos...
É uma
letra construída a partir dessas imagens. E que por si só podem conter muitas
significações: falam de um lugar tranqüilo, silencioso, de baixo estresse,
cheio de vida, cores, belezas, próximo à natureza, com fartura de alimentos,
pessoas crescendo e vivendo saudáveis, em relações cordiais, generosas, sem
problemas de superpopulação ou poluição.
É,
portanto, o oposto da vida moderna.
Essas
imagens tendem a trazer algum descanso para a alma. Mas podem levar a reflexões
sobre a forma como vivemos. O videoclip da música, por exemplo, é todo
construído a partir de cenas de catástrofes, guerras, desgraças e outras
misérias humanas, imagens essencialmente opostas às mostradas na letra. É o que
chamamos de “signos invisíveis”, assunto que veremos mais à frente.
E o
texto ainda mistura outros importantes elementos. O mais recorrente deles é a
deconstrução (desconstrução e reconstrução):
1 – “quem descansa vê o horizonte deitar no chão”
2 – “Lá o mundo tem razão”
3 – “Paraiso se mudou para lá”
3 – “Paraiso se mudou para lá”
4 – “Sonho semeando o mundo real”
5 – “Lá o tempo espera”
Há
também jogos de palavras:
“Vem
andar e voa
Vem
andar e voa
Vem
andar e voa”
...que
brincam nos ouvidos e no corpo, trazem sensações rítmicas.
E a narrativa
relacional:
“Tem
um verdadeiro amor para quando você for”
Até
então, não havia essa outra pessoa para quem o narrador estava se dirigindo. E
quando entra esse interlocutor, fala-se de afeto. E, claro, isso tende a trazer
ainda mais afetividade para o texto, aproxima o ouvinte, estabelece mais
cumplicidade. Temos aí, portanto, um texto preponderantemente de imagens,
permeado por deconstruções, jogos de palavras e narrativa relacional. São esses
os principais elementos utilizados.
Outras imagens:
“Estou enfiado na lama” (Manguetown - Chico Science/Lucio
Maia/ Dengue)
“Raps e Hippies e roupas rasgadas, ouço acentos, palavras
largadas pelas calçadas sem arquiteto, casas montadas, estranho projeto, beira
de mangue, alto de morro, pelas marquises, debaixo do esporro...” (Tupi - Pedro Luís)
“No meio da multidão ela brilhou pra mim...” (Nega - Marcelo D2)
“...Por meus passos velozes, vapores, suores, sotaques, antenas,
Antunes, Stones
Por meus passos ligeiros, graffitis, mau cheiro, não fosse por
você, eu não notava essa cidade” (Graffitis - Adriana
Calcanhotto)
“São 7 horas da manhã, vejo Cristo da janela / O sol já
apagou sua luz e o povo lá embaixo espera / Nas filas dos pontos de ônibus, procurando aonde ir...” (Um Trem
Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)
“Da janela lateral do quarto de dormir, vejo
uma igreja, um sinal de glória / Vejo um muro branco e um vôo, pássaro, vejo
uma grade, um velho sinal...” (Paisagem na Janela - Fernando Brandt / Lô
Borges)
”Em
cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana...”
“Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana"
"O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto parece música urbana
E a matilha de crianças sujas no meio da rua - música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana"
"Os uniformes, os cartazes, os cinemas e os lares / Nas favelas, coberturas, quase todos os lugares...” (trechos de Música Urbana 2 - Renato Russo)
No último exemplo temos uma fusão de imagens concretas com significados abstratos, as imagens são nítidas, reais, cotidianas, tangíveis, mas estão ligadas a uma abstração comum: a “música urbana”, que tem significados alegóricos e pode representar várias coisas, de modo abstrato.
Vejamos também essas imagens abstratas; e em diversos casos, também metafóricas:
“Coqueiros
varam varandas no Empire State” (A Ponte – Lenine / Lula Queiroga)
“...pôs meu frágil coração na cruz, no
teu penoso altar particular” / “Tão longe quanto eu possa ver de mim, onde
ancoraste teu veleiro em flor” (trechos de Altar Particular - Maria Gadu)
“Num trem pras estrelas...” (Um Trem Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)
“O mundo todo reside dentro, em mim” (Onde Ir – Vanessa da Mata)
“Bateu de frente com o trem social”
(Cagaço - Herbert Vianna / Bi Ribeiro)
Magno Mello
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