quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Rimas por aproximação sonora

Além de serem muito mais recorrentes do que imaginamos, as rimas por aproximação sonora podem trazer excelentes resultados à letra, tanto pela imprevisibilidade, quanto pelas sonoridades diferenciadas que costumam apresentar.

Muitas vezes são "rimas elegantes".

E aumentam significativamente as possibilidades de se rimar.

Eis alguns casos mais comuns:

Feliz / partir / aqui / assim, todas essas terminações rimam entre si, por aproximação sonora. Par, paz, pai, também. O mesmo se dá com palavras terminadas em:

 - “Eu” e “er” - valeu / fazer
 - “Ão” e “om” - canção / batom
 - “Om” e “or” – som / cor
 - “Em” e “er” – ninguém / saber
 - “Em” e “ei” – também / lei
 - “Or” e “ou” – sabor / restou
 - “Or” e “ól” – amor / futebol
 - “Ou” e “ól” – virou / farol

Estes são apenas alguns exemplos, mas há muitas outras possibilidades de aproximação sonora que oferecem rimas agradáveis e sensatas aos ouvidos.

Alguns exemplos em canções - trechos:

"Calçada pra favela, avenida pra carro,
Céu pra avião, e pro morro descaso.
Cientista social, Casas Bahia e tragédia,
Gostam de favelado mais que Nutella
Quanto mais ópio você vai querer?
Uns preferem morrer ao ver o preto vencer
É papel alumínio todo amassado,
Esquenta não mãe é só uma cabeça de alho...
Um índio (Caetano Veloso)
Cartola virá que eu vi,
Tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali
Cantar rap nunca foi pra homem fraco
Saber a hora de parar é pra homem sábio" (Sucrilhos - Criolo)

“Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro
Os punhos e os pulsos cortados
E o resto do meu corpo inteiro
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo” (Flores  - Tony Bellotto / Sérgio Britto / Charles Gavin / Paulo Miklos)

“Solidão é lava
Que cobre tudo
Amargura em minha boca

Sorri seus dentes de chumbo...” (Dança da Solidão - Paulinho da Viola)

“Não me elegeram chefe de nada
O meu cartão de crédito é uma navalha” (Brasil – Cazuza)

“Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa A vida é tão rara...” (Paciência - Lenine e Dudu Falcão)

“A banda cover do Diabo acho que já tá por fora
O mercado tá de olho é no som que Deus criou 
Com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
Mundo inteiro vai pirar com o heavy metal do Senhor” (Heavy Metal Do Senhor - Zeca Baleiro)

“O goleiro é um homem de elástico
Só os dois zagueiros tem a chave do cadeado
Os laterais fecham a defesa
Mas que beleza é uma partida de futebol” (Partida De Futebol - Samuel Rosa e Nando Reis)

“Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos” (Garotos - Leoni)

“Estátuas e cofres e paredes pintadas
Ninguém sabe q que aconteceu...
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender...” (Pais e Filhos - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)

“Eu posso estar sozinho
Mas eu sei muito bem aonde estou 
Você pode até duvidar
Acho que isso não é amor” (Será - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)

“Pra onde essa onda vai?
De onde essa onda vem?
Eu não sei o que ela me traz
Mas o meu desejo é que me leve também” (Onde Anda a Onda - Paulinho Moska)

Também uso:

“Me diz quanto querer pode existir
Eu sei que vou sofrer, mas fico mesmo assim” (Vou me iludir - Magno Mello / Pedro Morais)

Olha essa que interessante:

“De que ele o sol inunda
O mar quando se põe
Imagem moribunda
De um coração que foi (J. de Deus)

Três de Raul Seixas:

Admito / comigo
Apressado / cigarro
Banquete / gente

As possibilidades são muitas e podem trazer originalidade às rimas.

Arrisque-se! 


Magno Mello

Linguagem subjetiva

A linguagem subjetiva em letras de música parece ser um caso moderno, ou melhor, contemporâneo. Até os anos cinquenta não se tem muita notícia, no Brasil ou no mundo, de letras que claramente dependiam da interpretação do ouvinte. Geralmente os autores deixavam transparecer de forma clara suas intenções, que mensagem estavam passando, ainda que com o uso de metáforas.

Na literatura, essa forma de leitura deve-se, em parte, ao aparecimento da narrativa não linear que marca o início da literatura moderna, inaugurada por Gustave Flaubert no romance inacabado “Bouvard e Pecuchét”, 1881.

Um pouco antes disso na França, poetas, pintores, dramaturgos e escritores, influenciados pelo misticismo do pensamento, da arte e de religiões orientais, começam a lançar a base do Simbolismo, outro movimento que colaborou para valorizar ainda mais o ponto de vista do indivíduo em detrimento do senso comum ou do plano geral. Nesse sentido, os simbolistas valorizavam também o inconsciente e o sonho – alguns anos mais tarde começam a surgir as bases da psicanálise, de Freud, o que tende a confirmar que a arte está sempre ligada às manifestações de seu tempo e vice-versa. O grande precursor do movimento, que em 1881 recebe o rótulo pejorativo de Decadentismo, e só em 1886 é nomeado Simbolismo, foi o poeta francês Charles Baudelaire com "As Flores do Mal", de 1857 (Charles Darwin lança, em 1859, "A Origem das Espécies"). Outros grandes expoentes do movimento são Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé.
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Outro movimento importante para a consolidação da literatura moderna foi o Imagismo, escola estética lançada em 1921 por Ezra Pound que propunha a maior utilização da linguagem coloquial, a despreocupação com a métrica, os versos livres e as imagens: descrever e “pensar” as imagens mais do que compará-las. O objetivo era também libertar a poesia de recursos retóricos como a analogia, o sentimentalismo e o idealismo. Pound propagou as ideias de T. E. Hulme, que dizia que a poesia utilizando-se de imagens e da metáfora teria maiores possibilidades de exprimir o que realmente se desejava.

A literatura moderna é definitivamente instaurada por James Joyce com o surgimento do seu “Ulisses”, em 1922, a partir do emprego de linhas temporais desconexas e formas caleidoscópicas de se contar uma estória. E na poesia, no mesmo ano, o inglês T. S. Eliot lança The Waste Land. Apesar da obra não ter tido grande repercussão à época, apresenta mudanças abruptas de narração, localidade e tempo. Todos esses fatores reunidos colaboraram para o estabelecimento da linguagem subjetiva. 

Voltando ao caso específico de letras de música o fenômeno parece coincidir com a contracultura americana, com a urgência em se desconstruir a ordem vigente, com o crescimento do individualismo e com a era da informação e seus conteúdos em "pílulas" e hipertextuais.

Temos, portanto, um novo cenário em que não apenas uma letra de música, mas outros tipos de textos, em prosa e verso - muitos deles para cinema, televisão e mídias eletrônicas - podem ser também um mosaico de informações a partir de colagens de palavras, de frases, de sentidos e até de temas.

Vejamos o seguinte exemplo:

Todo Carnaval Tem Seu Fim (Marcelo Camelo)

Todo dia um ninguém José acorda já deitado
Todo dia, ainda de pé, o Zé dorme acordado
Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia
Toda trilha é andada com a fé de quem crê no ditado
De que o dia insiste em nascer
Mas o dia insiste em nascer pra ver deitar o novo

Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada
Toda bossa é nova e você não liga se é usada
Todo o carnaval tem seu fim
Todo o carnaval tem seu fim
E é o fim
E é o fim

Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !
Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz

Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco?
Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco
Toda escolha é feita por quem acorda já deitado
Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado
E pinta o estandarte de azul
E põe suas estrelas no azul
Pra que mudar?


Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !
Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !


O que diz o texto? Fala de algo bom ou ruim? Uns acham a mensagem positiva, outros totalmente o contrário. E você, o que acha? Dá para se entender claramente o que está sendo falado? Dificilmente. Até porque a intenção não parece ser essa. Mas mesmo não se sabendo exatamente o que significam todas essas frases agrupadas, há um conteúdo abstrato, intuitivamente compreensível, em pinceladas, que pode ser lido de várias maneiras. E o mais importante: há muitas indicações de caminhos e muitas portas de entrada e saída. É, ainda, um outro modo, menos linear - e muitas vezes não linear - de se concatenar ideias.

Gostando ou não dessa forma de se escrever, o fato é que ela existe, é hoje utilizada por muita gente e parece que veio para ficar, não em detrimento das formas mais tradicionais ou explícitas, mas como um jeito outro de se expressar.

Magno Mello 

Analise da letra de “A Ponte” (Lenine / Lula Queiroga)

A Ponte (Lenine / Lula Queiroga)

Como é que faz pra lavar a roupa? Vai na fonte, vai na fonte
Como é que faz pra raiar o dia? No horizonte, no horizonte
Esse lugar é uma maravilha, mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte

A ponte não é de concreto, não é de ferro, não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir, nem pra voltar, a ponte é somente atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

A ponte nem tem que sair do lugar, aponte pra onde quiser
A ponte é o abraço do braço de mar com a mão da maré
A ponte não é para ir nem pra voltar, a ponte é somente atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

Nagô, Nagô...na Golden Gate

Entreguei-te meu peito jorrando meu leite
Atrás do retrato postal fiz um bilhete, no primeiro avião mandei-te
Coração dilacerado, de lá pra cá sem pernoite
De passaporte rasgado sem ter nada que me ajeite
Coqueiros varam varandas no Empire State,
Aceite minha canção hemisférica, minha voz na voz da América
Cantei-te, amei-te.


Analise da letra de “A Ponte” (Lenine / Lula Queiroga)

Características principais:

Estrutura de idéia central. Mensagem metafórica. Abertura indireta. Narrativa reflexiva. Incursões relacionais. Deconstruções (desconstruções + reconstruções). Jogos de palavras e ou rítmicos. Pergunta e resposta.

1ª estrofe: num jogo de pergunta e resposta os dois primeiros versos aludem, indiretamente, a um determinado lugar. E essa alusão já estabelece pelo menos duas primeiras imagens: alguém (ou pessoas) lavando roupa na fonte e o dia raiando no horizonte . Percebe-se também um jogo rítmico nas respostas: “vai na fonte, vai na fonte” e “no horizonte, no horizonte”. Imagens e jogos rítmicos: dois potenciais causadores de interesse. Devemos ainda considerar a sonoridade e a semântica das palavras que foram ditas, além da métrica dos versos; o que deve ser feito ao longo de todo o texto. E, por fim, podemos analisar a abertura como indireta, pois a temática ainda não é clara.
No terceiro verso o autor fala diretamente sobre um lugar, "esse lugar é uma maravilha". E num bom domínio de síntese emenda o quarto verso questionando como se faz para, caso se queria, sair desse ambiente, que é uma ilha; mais imagens. E mais uma vez com bom poder argumentativo, no próximo verso já aponta o caminho, "pela ponte, pela ponte", terminando a estrofe com mais um jogo rítmico e mais uma imagem. As ideias se desenvolvem rapidamente em poucas palavras e geram muitos signos pelo caminho. Temos na primeira estrofe, portanto, diversos elementos causadores de interesse.

2ª estrofe: o interesse é potencializado pela surpresa da metáfora, que alude a uma ponte cultural, causando uma reversão de expectativas. Até então, possivelmente,  acreditávamos se tratar de uma ponte física. Surge, no entanto, a ideia de uma ponte imaterial, que pode sugerir a força de nossa imaginação, a possibilidade de se vencer fronteiras e barreiras ou, o que é também provável, nos conectar com a ideia da internet, da velocidade e das possibilidades de nossa atual comunicação, do mundo globalizado, do tudo acontecendo ao mesmo tempo agora. Mais uma vez, em poucas palavras, há muitos signos contidos, visíveis ou a serem desvendados, ou mesmo reverberados e multiplicados dentro de nós.

3ª estrofe: o primeiro verso reforça a ideia de uma ponte cultural, que abre um rol de novas formas de se atuar no mundo. Há ainda um pequeno trocadilho entre "a ponte" e "aponte". O uso de trocadilhos é sempre arriscado. Mas neste caso, particularmente considero-o bem utilizado, participa de forma natural do sentido do verso e com ele colabora positivamente.
A segundo verso traz um novo elemento semântico, inaugura um novo ângulo na temática, ao começar a enfocar certo aspecto local atrelado ao global. E é também um interessante distendimento poético: utiliza-se um recurso de imagem alegórica, além de um bom jogo de palavras.
Por fim, repete-se nos dois últimos versos da estrofe os mesmos versos da estrofe anterior, o que tende a reforçar a ideia da letra na cabeça do ouvinte e contribuir para a "forma de letra de música".

4ª estrofe: apesar de a estrofe se parecer mais com um forte ponto de impacto do que propriamente com um refrão (embora seja uma analise subjetiva), chega-se ao ápice do tema com um ótimo domínio de síntese: "Nagô, nagô, na Golden Gate". O verso, ao mesmo tempo que condensa tudo que vinha sendo falado, fortalece ainda mais a identificação com o ouvinte. Nagô somos nós, estendendo nossa atuação no mundo globalizado, aqui, para o bem e para o mal (e cada um tem suas impressões) representado pela Golden Gate, um ícone americano (embora não dos mais representativos de um dito imperialismo). Representando a Golden Gate esse mundo globalizado, e sendo Nagô a representação tupiniquim, não deixa de ser também a imagem do próprio artista, Lenine, ganhando mundo, coisa que perceberemos com mais nitidez na quinta e última estrofe.

5ª estrofe: o autor passa para uma narrativa relacional "entreguei-te meu peito jorrando meu leite...", o que ainda não havia ocorrido no texto. Esse procedimento, geralmente afetivo, tende a reforçar ainda mais a comunicação com o ouvinte. Observa-se também que a linguagem e a métrica ficam mais soltas, o que causa distensionamento.
No segundo verso o autor manda notícias de fora. Nesse momento fica um pouco mais claro que o artista está ganhando mundo. Os dois versos seguintes reforçam a ideia: a alegoria "de passaporte rasgado" pode dizer tanto sobre a trajetória do artista, agora irreversivelmente internacionalizado, como sobre o irreversível processo de globalização. E, de certo modo, as duas coisas podem se misturar.
O antepenúltimo verso, "Coqueiros varam varandas no Empire State", potencializa ainda mais a argumentação, trazendo de um novo ângulo a ideia anterior do regional atrelado ao global, dizendo também sobre o próprio estilo musical do intérprete, o regionalismo misturado a elementos de última geração. O autor é um representante desse movimento. Nota-se ainda o jogo rítmico de palavras e a imagem alegórica, deconstruída, o que mais uma vez causa relaxamento, enquanto se transmitem mensagens significativas.
No penúltimo verso fica ainda mais clara a sutil (ou já não tão sutil) intenção do autor, de vender seu peixe: “Aceite minha canção hemisférica, minha voz na voz da América...”, dito de modo relacional, de um coração para outro, com o auxílio de jogos de palavras, relaxamentos métricos, imagens alegóricas, e, finalmente, no último verso: "cantei-te, amei-te / cantei-te, amei-te", para ficar ainda mais afetiva a proposta e aliviar a possibilidade de o autor parecer prepotente (um interessante jogo de bate e assopra).

Considerações finais: essa letra de canção, na minha opinião muito bem construída, lançou o artista, Lenine, para o Brasil, ainda que para um público segmentado. E conseguiu transmitir várias mensagens de uma só vez: o mundo e suas novas possibilidades. Como as tendências se apresentavam naquele momento, em 2006; e ainda continuam se apresentando. Uma forma de se fazer música: regionalismo atrelado às novas tendências mundiais, utilizando-se de elementos de última geração. A identidade artística do intérprete contida na própria letra, e potencializada pelo tipo de argumentação. A cumplicidade com o ouvinte, que também pode se sentir ali representado.


Magno Mello

Narrativa Imagística

Outra forma de narrativa é por meio de imagens. A imagem sempre foi recurso largamente utilizado na literatura, poesia e letra de música de todos os tempos. Imagens também contam histórias, possibilitam reflexões, desdobram sentimentos, mexem de diversas formas com os sentidos. E ainda podem ser fortes aliadas da linguagem subjetiva, pois a imagem é, é algo em si mesmo, antes de qualquer cultura, de qualquer significado ou valoração, simplesmente está ali. Desse modo, o valor é dado por quem a vê e cada um pode interpretá-la da forma que quiser, de acordo com seus próprios valores, histórias de vida, cultura e outras conexões cognitivas. Mas uma coisa é certa: toda imagem, ou quase toda, carrega significado e ou valor. Na fotografia há um jargão recorrente; e não é a toa: "uma boa imagem diz mais que mil palavras".

Conforme já vimos, um dos responsáveis pela disseminação do recurso de imagens na textualidade moderna foi o poeta inglês Ezra Pound e seu movimento, batizado de Imagismo. Mas havia no mundo, naquele momento, diversas outras tendências concorrendo para o fortalecimento do aspecto visual na produção textual. É num período anterior, razoavelmente próximo, que o jornalismo mundial dá um grande salto, com a invenção do telégrafo, em 1844, quando as notícias passam a circular muito mais rapidamente. Portanto, é de se esperar que a literatura comece a absorver esse legado do relato puro e simples, supostamente (e apenas supostamente) isento, noticioso e mais imagístico, por assim dizer. No fim do século XIX, a invenção do cinematógrafo, pelos Irmãos Lumière, na década de 1920 surge o rádio, nos anos 1940 conhecemos a televisão, aspectos que certamente aceleram ainda mais o apelo visual na mentalidade das pessoas.

A narrativa imagística, portanto, pode ser ótima causadora de interesse, pois além das qualidades que carrega em si mesma e de todo o aparato tecnológico que a impulsionou, é ainda potencializada por algo irrefutável: somos, prioritariamente, seres visuais. 

Talvez não seja mais necessário pontuar, mas, conforme as outras ferramentas observadas anteriormente, com a narrativa imagística não poderia ser diferente: podemos usá-la ao longo de toda uma letra, em uma seção, estrofe ou apenas num único verso, enfim, a qualquer momento.

Vejamos este primeiro exemplo:

Vilarejo (Marisa Monte, Pedro Baby, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes)

Há um vilarejo ali, onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão 
Pra acalmar o coração, lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Paraiso se mudou para lá
Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal 
Peitos fartos, filhos fortes Sonho semeando o mundo real

Toda gente cabe lá, ­Palestina, Shangri-lá
Vem andar e voa, vem andar e voa, vem andar e voa
Lá o tempo esperalá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar
Em todas as mesas, pão, flores enfeitando

Os caminhos, os vestidosos destinos
E essa canção
Tem um verdadeiro amor
Para quando você for

Percebemos acima a utilização de muitas imagens:

1 – Há um vilarejo ali.
2 – Na varanda, quem descansa, vê o horizonte deitar no chão
3 - Por cima das casas, cal
4 - Frutas em qualquer quintal
5 - Peitos fartos, filhos fortes
6 - Lá é primavera
7 - Portas e janelas ficam sempre abertas
8 - Em todas as mesas, pão
9 - Flores enfeitando os caminhos, os vestidos...

É uma letra construída a partir dessas imagens. E que por si só podem conter muitas significações: falam de um lugar tranqüilo, silencioso, de baixo estresse, cheio de vida, cores, belezas, próximo à natureza, com fartura de alimentos, pessoas crescendo e vivendo saudáveis, em relações cordiais, generosas, sem problemas de superpopulação ou poluição. 
É, portanto, o oposto da vida moderna.
  
Essas imagens tendem a trazer algum descanso para a alma. Mas podem levar a reflexões sobre a forma como vivemos. O videoclip da música, por exemplo, é todo construído a partir de cenas de catástrofes, guerras, desgraças e outras misérias humanas, imagens essencialmente opostas às mostradas na letra. É o que chamamos de “signos invisíveis”, assunto que veremos mais à frente.

E o texto ainda mistura outros importantes elementos. O mais recorrente deles é a deconstrução (desconstrução e reconstrução):

1 – “quem descansa vê o horizonte deitar no chão”
2 – “Lá o mundo tem razão”
3 – “Paraiso se mudou para lá”
4 – “Sonho semeando o mundo real”
5 – “Lá o tempo espera”

Há também jogos de palavras:

“Vem andar e voa
Vem andar e voa
Vem andar e voa”

...que brincam nos ouvidos e no corpo, trazem sensações rítmicas.

E a narrativa relacional:

“Tem um verdadeiro amor para quando você for”

Até então, não havia essa outra pessoa para quem o narrador estava se dirigindo. E quando entra esse interlocutor, fala-se de afeto. E, claro, isso tende a trazer ainda mais afetividade para o texto, aproxima o ouvinte, estabelece mais cumplicidade. Temos aí, portanto, um texto preponderantemente de imagens, permeado por deconstruções, jogos de palavras e narrativa relacional. São esses os principais elementos utilizados.

Outras imagens:

“Estou enfiado na lama” (Manguetown - Chico Science/Lucio Maia/ Dengue)

Raps e Hippies e roupas rasgadas, ouço acentos, palavras largadas pelas calçadas sem arquiteto, casas montadas, estranho projeto, beira de mangue, alto de morro, pelas marquises, debaixo do esporro...” (Tupi - Pedro Luís)


“No meio da multidão ela brilhou pra mim...” (Nega - Marcelo D2)

“...Por meus passos velozes, vapores, suores, sotaques, antenas, Antunes, Stones
Por meus passos ligeiros, graffitis, mau cheiro, não fosse por você, eu não notava essa cidade” (Graffitis - Adriana Calcanhotto)

 “São 7 horas da manhã, vejo Cristo da janela / O sol já apagou sua luz e o povo lá embaixo espera / Nas filas dos pontos de ônibus, procurando aonde ir...” (Um Trem Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)


“Da janela lateral do quarto de dormir, vejo uma igreja, um sinal de glória / Vejo um muro branco e um vôo, pássaro, vejo uma grade, um velho sinal...” (Paisagem na Janela  - Fernando Brandt / Lô Borges)

”Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana...”

“Os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana
E nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana"

"O vento forte, seco e sujo em cantos de concreto parece música urbana

E a matilha de crianças sujas no meio da rua - música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana"


"Os uniformes, os cartazes, os cinemas e os lares / Nas favelas, coberturas, quase todos os lugares...” (trechos de Música Urbana 2 - Renato Russo)


No último exemplo temos uma fusão de imagens concretas com significados abstratos, as imagens são nítidas, reais, cotidianas, tangíveis, mas estão ligadas a uma abstração comum: a “música urbana”, que tem significados alegóricos e pode representar várias coisas, de modo abstrato.

Vejamos também essas imagens abstratas; e em diversos casos, também metafóricas:

“Coqueiros varam varandas no Empire State” (A Ponte – Lenine / Lula Queiroga)

“...pôs meu frágil coração na cruz, no teu penoso altar particular” / “Tão longe quanto eu possa ver de mim, onde ancoraste teu veleiro em flor” (trechos de Altar Particular - Maria Gadu)

 “Num trem pras estrelas...” (Um Trem Para as Estrelas - Cazuza e Gilberto Gil)

“O mundo todo reside dentro, em mim” (Onde Ir – Vanessa da Mata)

 “Bateu de frente com o trem social” (Cagaço  - Herbert Vianna / Bi Ribeiro)


Magno Mello