quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Sobre o ministrante

Há dezesseis anos o compositor, letrista, escritor e livre pesquisador Magno Mello vem estudando o universo das letras de canções brasileiras, a partir de uma abordagem inédita no Brasil sobre os elementos, ferramentas e conexões que estruturam uma letra de música.

A pesquisa se transformou em estudo sistematizado e, posteriormente, no Workshop de Poética Musical.

Em 2010 Magno Mello recebeu pelo trabalho o Prêmio Interações Estéticas, MinC/Funarte.

Como compositor, possui mais de 120 músicas gravadas por artistas como Pedro Morais (MG), Manu Santos (RJ), Izzy Gordon (SP), André Lima (SP), Bia Marchese (SP), Marina Machado (MG), Vanessa Longoni (RS), Kadu Vianna (MG), Gláucia Nasser (SP), Raquel Coutinho (MG), Thaís Uessugui (BSB), Damaris Morais (RJ), Graça Cunha (SP), Lúdica Música (MG).

Magno Mello...sem dúvida, afirma-se como um dos melhores novos letristas brasileiros” – Juarez Fonseca – Jornalista e Crítico Musical – 2011

Meu caro Magno. Dizer que admiro seu trabalho é bobagem, eu já disse e muitos outros também disseram. Tive a oportunidade de ver um workshop seu na minha universidade e pude comprovar a seriedade com que você desenvolve o trabalho. Sem deixar de salientar que achei esse trabalho uma importante ferramenta de análise literária. Um grande abraço” – Sérgio Aversa – Vice-Diretor da Faculdade de Música da UEMG – MG.

Magno Mello é, sem nenhum favor, um sopro de ar fresco no bolor que habita aquilo que muitos consideram MPB. Sua pesquisa é importante e ponto final na frase. Ele é um desbravador. Tive o privilégio de recebê-lo como ministrante em minha escola e a manifestação dos alunos foi indiscutivelmente positiva. Parabéns!” – Hudson Vaz - Maestro e Arranjador.

Sinto-me privilegiado por ter recebido e oferecido através da minha escola o curso para formação de letristas do pesquisador e compositor Magno Mello. E em quatro diferentes ocasiões! O curso guarda em si um ineditismo que, por si só, o torna muito especial. Mais que diferente, o curso é bastante útil, pois leva os alunos a refletirem sobre importantes aspectos da composição de letras que dificilmente são levados em conta no momento da criação. E o melhor é a forma como oferece um leque de ferramentas de análise sem ir de encontro à liberdade criativa. Parabéns, Magno! Agradecemos pelo seu trabalho e sensibilidade!” - Luiz Bragança

Seu curso mudou minha poética, ajudou-me a sintetizar soluções para as letras, me muniu de um caráter técnico que, penso eu, transformou minhas novas composições. Recebi uma avalanche de informações em dois dias de curso e ainda hoje, passado mais de um ano, continua "caindo a ficha" de pouco em pouco. Essas informações técnicas se transformam em ferramentas para o escoamento da inspiração, por caminhos sólidos e funcionais. A gente engole tudo isso, digere e vai enraizando de pouco em pouco essa nova maneira de pensar poeticamente. Arrasou!!! - Rodolfo Figueiredo - participante

O Curso de Poética Musical do Magno Mello é objetivo, claro e revelador. Descobri ferramentas para melhorar e avaliar minhas composições. Assim pude dar acabamento em letras que precisavam de um toque final e consegui enxergar mais possibilidades de criação. Vale muito a pena, sem dúvida” - Viviane Donner - participante

Magno Mello é sem sombra de dúvida, um dos melhores letristas desta nova geração! Seu estudo nos dá abertura ao debate e nos permite desmembrar e esclarecer muitas questões. Um trabalho sério, ético, embasado em exaustivo estudo. Nos incita a conhecer ainda mais a profundidade e o vigor cultural de sua obra. Parabéns Magno Mello. Abraços!!!” - Lino Lanna - participante

O curso de Poética Musical, eu recomendo a todos, pela facilidade da técnica de linguagem e possibilidade de interação entre quem aplica o conhecimento e todos os participantes. Vale a pena, abre caminho para os que têm poesia guardada lá no cantinho da alma e conseguem passar para a música a letra de suas vidas” - Amilton Faria - participante






segunda-feira, 20 de março de 2017

Métrica

Métrica

(Trecho extraído do estudo "Uma Poética Musical - o universo das letras de música" - Magno Mello)

Um texto muitas vezes começa pelo ritmo, pela métrica que nos alcança, vinda não se sabe de onde, mas exigindo palavras. As palavras, por sua vez, em princípio ilhas de sonoridade, passam a exigir sentidos. Pois é dessa maneira que também se iniciam livros, poemas, crônicas, letras de canção e até relatórios.

Este é, portanto, um fenômeno estético, quase uma sensação física, essa dança de pré-palavras vindas de um lugar desconhecido que muitas vezes entendemos como inspiração, e alguns pesquisadores da criatividade entendem como pré-disposição a combinações aleatórias até que algo faça sentido. Mas seja qual for o caso, é importante que saibamos: é possível alimentar, enriquecer, potencializar esse "lugar" com elementos e percepções rítmicas, assim como com outros tantos elementos que participam da criação textual. O que, sem dúvida, só fará aumentar nossa capacidade criativa.

Podemos dizer, num certo sentido, que o ritmo contém a métrica, inicia-se nela, mas a ultrapassa. Especialmente nos casos de textos em prosa, quando essa métrica perde quase toda sua visibilidade estrutural e se torna a própria respiração do texto, dessa forma influenciando em alto grau a comunicabilidade e a atratividade do que é escrito. Estando o ritmo num texto de algum modo empobrecido ou acidentado, perde-se muito a qualidade do que é dito.

Para os dois casos, tanto de se iniciar um texto por influência do ritmo, como se ter domínio desse ritmo para melhor comunicar um enunciado, a percepção e a absorção de métricas de letras de música são maneiras lúdicas, sensíveis e afetivas de se potencializar essas capacidades. Isso porque, além desse gênero textual ser passível de mapeamento quanto à sua métrica, apresenta não apenas incontáveis exemplos das mais variadas metricidades, mas ainda de momentos em que a métrica, visível, vai se transformando em ritmo, já algo invisível aos olhos, mas perceptível ao senso estético, e mesmo ao entendimento físico quanto a fluidez e as nuances de respiração do texto.

Com letras de música é possível até se contar "histórias métricas", de forma lúdica e divertida. Essa brincadeira pode ser feita isolando-se a métrica do texto, retirando as palavras, mas ainda mantendo a parte rítmica. E depois comunicar essa rítmica oralmente, mas com o uso de somente uma única sílaba escolhida, de preferência uma sílaba de ”ataque", por exemplo, um "Tá". Ou seja, um "Tá" substituindo cada sílaba (ou sílaba melódica* - ver mais à frente). Além de neste caso se ter a visualização apenas da métrica contida no texto, em cada verso, em cada estrofe e na estrutura do texto como um todo, a brincadeira ainda se estende para um jogo de inflexão sonora. Uma simples brincadeira como essa enriquece nossa visão rítmica sobre um texto, seja ele qual for.

Pois é essa noção, que compreende e percebe, estética e fisicamente, a métrica e o ritmo, que se há também de desenvolver no indivíduo produtor de escrita. Esses elementos, além do elemento sonoro, são os pilares da escrita e da própria fala, antes de qualquer proposição semântica, antes de qualquer construção gramatical, e antes até da palavra, pois o som e o ritmo são anteriores à própria linguagem falada, e, de muitos modos, base para sua existência; que se pense numa criança aprendendo a falar ou em nossos ancestrais inventando as primeiras palavras. Sem esses elementos, portanto, não há argumento que bem se sustente, também por ser o indivíduo humano esse complexo, pragmático e lógico, mas não menos lúdico e sensível, receptor e comunicador de informações. A própria linguagem é uma construção lúdica, emocional e, mais que isso, jamais está pronta. É sempre, e está sempre, por ser reinaugurada em si mesma, com isso inventando, reorganizando e redimensionando novos sentidos e desejos, novas visões e cognições, novos mundos, dentro e fora de nós. E, assim como seus enunciados semânticos e suas construções gramaticais e estéticas, suas possibilidades rítmicas são infinitas.

Se é verdade que a métrica e o ritmo têm esse papel sedutor, uma vez que se potencialize tal sensibilidade no indivíduo, certamente haverá nisso contribuição para a formação de mais leitores. Ou seja, o ritmo se torna um elemento a mais para aproximar esse indivíduo da leitura.

A métrica nas letras de canções

Imaginemos que por trás de uma letra de música há uma melodia. Seguindo a mesma lógica, vem a pergunta: o que há por trás da melodia? A resposta é: métrica ou rítmica da melodia.

Muitas vezes, ao fazer uma letra ou melodia não nos atentamos para a qualidade de sua métrica. Percebemos a métrica, sabemos que lá está, ainda que de modo inconsciente. Mas poucas vezes paramos para observar sua qualidade, se possui uma rítmica interessante, se carrega algum valor semântico, se é mais ou menos previsível, o quanto varia de uma estrofe para outra, de um verso para outro, ou o quanto pode ser melhorada.

Mas mesmo que o ouvinte não se dê conta, a métrica é também um elemento causador de interesse ou desinteresse. Sempre estará impressa numa letra. E sempre será ouvida e assimilada, de forma mais, ou menos, consciente.

Vejamos esta conhecida cantiga de roda:

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

“Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu-reu-reu,
Dona Chica-ca admirou-se-se, do berro, do berro que o gato deu”

Agora vejamos a sua métrica. Para que a compreensão fique ao alcance de todos evitaremos o uso de partitura e representaremos cada sílaba com uma letra T (apenas uma consoante com bom apelo rítmico), sendo que cada sílaba representa uma nota musical.

Sílaba melódica*

Geralmente, cada nota musical contém uma sílaba. Mas, no caso da canção há ainda a sílaba melódica. por exemplo: "tu és di-vi-nae-gra-ci-o-saes-tá-tua ma-jes-to-ja...". Isso quer dizer que uma nota musical pode conter fragmentos de outra sílaba ou mais de uma sílaba. Pois consideremos também essa possibilidade.

E há, por fim, o caso dos glissandos, quando uma sílaba pode valer por duas ou mais notas musicais. Ex: Eu vi ̮ i
                                              T   T  T

No exemplo acima há três notas, embora apenas duas sílabas, sendo a última nota um fragmento do verbo utilizado.

Voltando à nossa canção, a métrica em "T" ficaria assim (cante devagar e acompanhe cada T junto a cada sílaba/nota):

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

A   ti rei o pau no ga to to
T   T T   T T      T T    T  T
mas o ga   to to  não mo rreu  reu reu
  T   T  T    T T      T   T   T        T T
do na Chi   ca ca   ad mi rou  se se
  T  T  T       T T      T  T  T      T T
do be rro  do be rro   que ̮o ga to deu
  T  T  T     T  T  T          T   T  T  T

Agora podemos suprimir as sílabas. Veja como fica nosso mapa métrico:

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

T  TT  TT  TT  T  T
TTT  TT  TTT  TT
TTT  TT  TTT  TT
TTT  TTT  TTTT

Ficou clara a ideia? Cada T corresponde a uma nota musical. E, quase sempre, salvo nos casos já citados, corresponde a uma sílaba. Percebemos aí que se trata de uma métrica simples, comum, bastante previsível e repetitiva, como geralmente convém a uma cantiga de roda. Só o motivo TTT  TT se repete quatro vezes seguidas. E a duração de cada sílaba, ou nota, é quase sempre a mesma. É um caso de pouquíssima variação. Esse tipo de métrica colocada em uma canção “adulta” poderia soar pobre, o que possivelmente despertaria pouco interesse, podendo ainda prejudicar a sonoridade da canção e a transmissão da mensagem ou da ideia.

Vejamos agora outro caso:


A novidade veio dar a praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo escondido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Oh... mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
O, o, o, o,    o  o
Oh... de um lado esse carnaval
De outro a fome total
O, o, o, o,   o   o
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado
Oh... Mundo tão desigual...

Faremos a seguir o mapa métrico desta canção. Para isso, dividiremos a letra em partes: Intro (introdução), A (parte A), B (parte B) e Refrão”.

A Novidade (Gilberto Gil) – Mapa Métrico

Intro (em onomatopéias)

T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah

Parte A

T  T    T T     T T     T  T     T  T  T
A no  vi da  de vei  o dar  na prai a
 T  T    T T    T  T    T  T     T  T  T
na qua li da  de ra   ra de  se rei a
 T  T     T   T      T  T       T   T       T  T  T
me ta  de ̮o bus to de ̮u ma deu  sa mai a
  T  T       T   T        T   T     T   T      T  T  T
 me ta de ̮um gran  de ra   bo de     ba lei a
  
Parte B

T  T    T  T      T   T        T  T  T
A no  vi da  de ̮e ra ̮o   má xi mo
T  T     T T    T  T      T  T  T       T   T   T
Do pa ra do xo es   con di do  na ̮a rei a
 T  T      T T    T  T       T   T  T         T  T  T
Al guns a de  se jar  seus bei jos   de deu sa
   T  T    T  T    T  T     T   T   T       T   T  T
 Ou tros a de   se jar  seu ra bo    pra cei a

Refrão

T          T   T     T     T   T   T
Oh...  mun do  tão   de si gual
T    T      T      T   T   T
Tu do ̮é  tão    de si  gual
T       T       T      T    T        T
Uou, uou, uou, uou, uou    uou
T          T      T    T     T      T   T  T
Oh... de ̮um la  do ̮e sse  car na val
T    T     T      T    T   T  T
De ou  tro ̮a  fo  me  to  tal
T       T       T      T    T        T
Uou, uou, uou, uou, uou    uou

A partir de agora, tendo bem claro o funcionamento do modelo, não precisamos sequer adicionar a letra da música, apenas os "Ts". *Lembrando que é sempre mais fácil utilizarmos canções por nós já conhecidas. Ou mesmo nossas próprias criações. E o mapa métrico, dependendo do caso, pode também servir para a análise de métricas em poemas.

A Novidade (Gilberto Gil) – Mapa Métrico

Intro (em onomatopéias)

TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 

Parte A

TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT

Parte B

TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TTT  TTT
TT  TT  TT  TTT  T TT
TT  TT  TT  TTT  T TT

Refrão

T   T T  T  T T T
T T  T  T T T
TTTT T  T

T  T T  T T  T T T
T  T  T  T T T
TTTT T  T

Este é apenas um modelo simples para se fazer o mapeamento métrico. Pode haver outras formas mais elaboradas, ou com o uso da partitura, o que fica a critério de cada um.

Análise do mapa métrico

- Percebemos que na estrofe de introdução, onomatopaica, a métrica se repete nos quatro versos. O mesmo acontece na parte A. Mas a métrica da Intro já é diferente da métrica do A.

- Temos ao longo da letra dez variações métricas. Há, portanto, mudanças constantes e os padrões rítmicos já soam bem mais complexos e imprevisíveis que no exemplo de "Atirei o pau no gato". Esse movimento, geralmente, é importante para trazer à letra e ao ouvinte novos causadores de interesse, por menos aparentes que sejam à primeira vista. No caso da canção apresentada, muitas dessas mudanças se dão nas passagens de uma parte para outra. Mas na parte B já há alguma variação, especialmente entre o primeiro verso e os outros três.

- Vimos também que a métrica desdobra-se no refrão, ou seja, as notas se alongam, têm maior duração. E diminui o número de palavras por compasso. Esse fenômeno é recorrente em refrões, geralmente mais sintéticos que o restante da letra. Isso acontece em cerca de 70% dos refrões. Mas não é regra e nem deve ser.

Eis um exemplo contrário. Neste refrão o número de palavras por compasso aumenta significativamente em relação ao restante da letra:

Manguetown - trecho (Chico Science/Lucio Maia/ Dengue)

A
Estou enfiado na lama.
É um bairro sujo.
Onde os urubus tem casas.
E eu não tenho asas.
Mas estou aqui em minha casa
Onde os urubus têm asas
Vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal
Manguetown

Refrão

Andando por entre os becos / Andando em coletivos.
Ninguém foge a cheiro sujo / Da lama da manguetown
Andando por entre os becos / Andando em coletivos
Ninguém foge a vida suja / Dos dias da manguetown

Vimos que uma boa letra de canção geralmente apresenta algumas ou muitas variações métricas, entre as estrofes ou dentro das próprias estrofes. Mas como nas artes regras são apenas indicadores de caminhos e jamais verdades absolutas, é sempre possível subvertê-las e ainda assim obter ótimos resultados. Vejamos um caso contrário aos anteriores e nem por isso menos feliz:


“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou prá descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...

Quantas variações métricas temos nessa canção? Nenhuma. Há apenas uma única métrica, que se repete algumas dezenas de vezes ao longo de toda a letra.

Mapa métrico de "Construção"

TT  TTTT  TTTT  T  T  TT (a mesma métrica em todos os versos)

Há aí, porém, um fenômeno incomum. Essa métrica, por si, carrega um elemento semântico, possui significado: sugere algo mecânico, repetitivo, meio “robotizado”, alienado, que é exatamente o que diz a letra: a insatisfação gerada pela vida operária, pelo trabalho repetitivo, não criativo, pelo cotidiano que esmaga a subjetividade. É um caso raro, mas que evidencia ainda mais a importância da métrica por trás da melodia ou do verso.

Outro exemplo parecido se dá neste próximo caso:


Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluido em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado.
Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:
Reinstalar o sistema

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste e viva

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga...

Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor

No ponto em negrito acontece algo semelhante ao caso de Construção: métrica "robotizada", mecanizada, ao se tratar de assunto afim.

Mapa métrico - dicas

1 - Para se fazer mapas métricos sem o uso da partitura é importante que se escolham canções conhecidas, para que a organização em “Ts” faça mais sentido na hora da leitura. O que não impede de se analisar letras ou poemas desconhecidos.

2 - Fazendo mapas métricos de, pelo menos, dez canções, a qualidade da métrica de sua letra de canção ou de seu poema, ou mesmo do ritmo de seu texto em prosa, tende a aumentar significativamente. E, sem dúvida, aumenta também sua atenção para o fenômeno.

3 - Um mapa métrico pode ser feito de memória, enquanto se está no ônibus ou no metrô, por exemplo. Basta pegar uma canção conhecida e analisar mentalmente, estrofe por estrofe. E depois a relação entre as estrofes. Uma boa métrica fortalece sua melodia. E um bom ritmo fortalece seu texto.




terça-feira, 5 de agosto de 2014

Gênero textual: Letra de Música

Letras de música são uma das formas textuais mais absorvidas cotidianamente pela maior parte da população mundial, em especial por jovens e adolescentes.

São construções textuais intencionais, por meio das quais se quer transmitir uma mensagem e se transmite. Não são apenas textos lúdicos. Carregam mensagens morais, sociais e políticas. São, desse modo, indutores de comportamentos e formadores de opinião. Estabelecem e consolidam novos valores, pensamentos e, possivelmente, fortalecem o senso comum mais que a maioria dos textos cotidianos. E, por fim, podem ser - e são - utilizadas como instrumento de dominação ideológica. Portanto, de modo algum, devem ser assimiladas sem compreensão crítica e sem a observação das gradações de qualidade artística, lexical, semântica, sonora e estrutural.

Quanto a letra de música ser considerada gênero textual não há mais o que se discutir. São incontáveis os casos em que uma letra de canção em nada se assemelha a uma crônica, por exemplo, como tentam argumentar alguns, que a primeira é apenas um prolongamento desta última.

Ainda assim, em variadas situações, letras de música contam histórias, constroem personagens e enredos, passeiam pela crônica e em outros momentos podem ser lidas como poemas. Em alguns casos, são mesmo poemas (de alguns dos nossos maiores poetas de todos os tempos) que foram musicados. Mas, num espectro mais amplo, extrapolam de muitas maneiras os gêneros citados. Por exemplo, podem ser radicalmente distintas de um poema, não apenas por sua, tantas vezes, específica divisão de partes, incluindo aí o refrão, a introdução, a coda, as pontes, como por esse gênero ser o reino absoluto das anáforas e onomatopeias.

São comuns os casos nas letras de canção em que a anáfora - de modo mais amplo, o que chamamos de refrain ou recorrência verbal - é a própria estrutura do texto, muito mais que na poesia. Se em outros gêneros a recorrência pode ser considerada um perigo para a boa fluência textual, nas letras de música geralmente constrói vórtices, mundos sonoros e semânticos, e tantas vezes leva a palavra, a expressão e o verso repetidos, a novos entendimentos gramaticais e semióticos.

Sobre as tão utilizadas onomatopeias, que em letras de canção ganham possibilidades muito além da mera imitação de sons, pode-se dizer que dependem de escolhas estéticas, sonoras, silábicas, sendo que, em gêneros artístico-literários, forma também pode ser conteúdo.

As métricas de letras de música, em princípio sempre inéditas, também são uma importante característica desse gênero por estarem indissociadamente ligadas a uma melodia e suas notas de durações preestabelecidas. Desse modo, ao contrário da maioria dos poemas modernos e suas formas livres, as métricas de uma letra de canção sempre são passíveis de identificação, mapeamento e análise, práticas que, sem dúvida, contribuem para o enriquecimento rítmico na produção de qualquer tipo de texto.

É também facilmente identificável neste gênero textual outro fenômeno exclusivo, reconhecido pelos trovadores provençais do século XII como "Motz el Son", que é o resultado sonoro da união da sílaba com a nota musical.

Existem ainda, entre outros fenômenos próprios deste gênero, as colagens de versos, de palavras ou mesmo de fragmentos, bem como variadas argumentações e estruturas não-lineares. E muito mais que em outros gêneros textuais, rivalizando apenas com a poesia, há a farta presença de linguagens subjetivas, em que o entendimento do texto fica por conta do leitor ou ouvinte.

Diferentemente da visão inaugurada a partir da pesquisa de Poética Musical, ainda que exista em dicionário o conceito de cacófato, o estudo de nossa língua não se aprofunda no assunto, em como e o quanto esses fenômenos podem afetar a qualidade de um texto em seus aspectos sonoros, rítmicos e até semânticos, assim como não existem técnicas e exercícios para se detectar sua ocorrência. O mesmo se pode dizer do conceito de "semicacófato", neologismo criado para tornar possível a aferição de um fenômeno que é ainda mais específico, mas tão evidente quanto o cacófato.

No caso das tipologias textuais - narrar, relatar, prescrever, expor e argumentar - previstas no estudo da língua portuguesa, neste trabalho ganham outras e mais ampliadas classificações. Por exemplo, dentro da tipologia narrar, aqui transversalizada com outras tipologias, constam as narrativas imagísticas, cênicas, relacionais, por colagens etc. Os tipos de linguagem também ganham organizações próprias, como linguagem coloquial, metafórica, analógica, subjetiva, entre outras.

Além das letras de canções possuírem inúmeros elementos propícios à formação de leitores e produtores de texto mais competentes, podendo ser uma efetiva ponte para esse fim - e muitos educadores vêm se dando conta desse potencial - podem também ser utilizadas na educação para se trabalhar aspectos fonológicos, lexicais, morfológicos, morfossintáticos, sintáticos, semânticos e estilísticos da língua, incluindo argumentação, concatenação de idéias, coesão e fenômenos como assonância, aliteração, personificação, paralelismo, polissemia, homonímia, antonímia semântica e lexical, anáfora, eco, antítese, substantivação, oximoro, ironia, homeoteleuto, modulações de timbre, deslocamentos fonossintáticos, paranomásia, hipérbole, eufemismo, pleonasmo e outros.


Tudo isso, num ambiente textual que valoriza a beleza, que dialoga com o tempo presente, tanto no aspecto semântico como no linguístico, e que faz parte, como nenhum outro gênero textual, do cotidiano do aluno. Um tipo de texto que esse aluno muitas vezes conhece de cor, mais que qualquer outro. E, em muitos casos, o único tipo de texto que lhe é afetivo, ao menos num primeiro momento. 

Sobre o Workshop para Letristas de Música

Workshop de Poética Musical


O universo das letras de música


Poética Musical é um estudo inédito sobre os elementos, ferramentas e conexões que estruturam uma letra de música. Resultado da análise de mais de duas mil letras de canções brasileiras, é ferramenta de análise para qualquer tipo de letra de música, infantil ou adulta, e de múltiplos aspectos da poesia e outros tipos de textos, em verso e prosa.

Há dezesseis anos no mercado, o curso já foi ministrado em diversas unidades dos SESC de SP, MG e PE, Oficinas Culturais do Estado de São Paulo, universidades - USP, UNESP e UEMG – escolas de música de SP, RJ, MG, RS e DF, escolas públicas de RS e MG, pontos de cultura e outras instituições culturais e educacionais.

Em 2010 o trabalho foi contemplado com o “Prêmio Interações Estéticas”, MinC/Funarte.


Objetivos


- Desenvolver capacidades textuais como argumentação, concatenação de ideias, estética, síntese, sonoridade, ritmo textual, coesão, criatividade e originalidade.

- Trabalhar a capacidade de leitura e análise crítica de textos em geral.

- Apresentar visões multifacetadas de um mesmo objeto, no caso, letras de canções brasileiras, em suas dimensões semânticas, léxicas, estruturais, sonoras, rítmicas, estilísticas, históricas e sociais.

- Motivar a exploração de novos e mais elaborados caminhos silógicos e a ter maior contato com a própria subjetividade.


Carga horária


- 6 (seis) horas.


Conteúdo programático


Temáticas - conceito, originalidade, legitimidade, possibilidades de desdobramento, comunicabilidade, causadores de interesse.

Ângulos de abordagem - modos de olhar para um mesmo objeto, reorganização gramatical, reorganização semântica e relações.

Naturalidade e sonoridade das palavras - cacófatos, semicacófatos, negativas, sílabas colididas, repetição de palavras, ressignificações sonoras, motz el son, ritmo.

Métrica - variação métrica, mapa métrico, reescrevendo sobre métricas existentes, semântica métrica.

Rima - não obrigatoriedade da rima, rimas óbvias, rimas por aproximação sonora, rimas em línguas diferentes entre si, rimas em junções ou separações de palavras, rimas por acentuação.

Coerência

1 - Coerência Léxica: ao longo de todo o texto, com relação à imagem sonora e ou semântica, e universos léxicos.

2 - Coerência Semântica: argumentação, romantização, absolutismos, ideologismos, inverdades, ângulos recorrentes.

3 - Coerência de Continuidade: continuidade em prosa, continuidade em poesia, continuidade em letras de música, textos lineares e não lineares

Clareza Textual - proposições lúdicas, cumplicidade com o ouvinte, leitura subjetiva, gírias, significados herméticos, indicações semânticas

Estruturas Externas - intro, estrofe, ponte, especiais, refrão, refrain, coda

Estruturas Internas - ideia central, mote único, colagem de frases, colagem de palavras, jogos de meias palavras, histórias, biografias

Tipos de Linguagem - direta, metafórica, analógica, alegórica, desconstrutiva, subjetiva

Narrativa - reflexiva ou silógica, imagística, cênica, relacional, de relatos

Desdobramento de idéias - abstrato, concreto, pontes silógicas, pontes semânticas, pontes léxicas, amarração lógica, afastamento, distâncias irreconciliáveis

Signos invisíveis - psíquicos, sensíveis, pertencimento, associações, auto-referência, ideologia, outras referências.

Estruturação de texto: distribuição de idéias, abertura direta e indireta, conexão, momentos cruciais, tensão e relaxamento, fechamento, sintetização, acabamento

Refrão - pontos de impacto, paralelismo, palavra e onomatopeia, coloquial, onomatopaico, refrain, refrains de passagem, alegórico, pergunta e resposta, retração, tirado do próprio texto, mais de um refrão, impacto em uma palavra

Título - contido no texto, parcialmente contido no texto, que não aparece no texto

Análise Textual - mapa de análise.

Indicações de Leitura – literatura e poesia - comentários sobre obras e autores 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Rimas por aproximação sonora

Além de serem muito mais recorrentes do que imaginamos, as rimas por aproximação sonora podem trazer excelentes resultados à letra, tanto pela imprevisibilidade, quanto pelas sonoridades diferenciadas que costumam apresentar.

Muitas vezes são "rimas elegantes".

E aumentam significativamente as possibilidades de se rimar.

Eis alguns casos mais comuns:

Feliz / partir / aqui / assim, todas essas terminações rimam entre si, por aproximação sonora. Par, paz, pai, também. O mesmo se dá com palavras terminadas em:

 - “Eu” e “er” - valeu / fazer
 - “Ão” e “om” - canção / batom
 - “Om” e “or” – som / cor
 - “Em” e “er” – ninguém / saber
 - “Em” e “ei” – também / lei
 - “Or” e “ou” – sabor / restou
 - “Or” e “ól” – amor / futebol
 - “Ou” e “ól” – virou / farol

Estes são apenas alguns exemplos, mas há muitas outras possibilidades de aproximação sonora que oferecem rimas agradáveis e sensatas aos ouvidos.

Alguns exemplos em canções - trechos:

"Calçada pra favela, avenida pra carro,
Céu pra avião, e pro morro descaso.
Cientista social, Casas Bahia e tragédia,
Gostam de favelado mais que Nutella
Quanto mais ópio você vai querer?
Uns preferem morrer ao ver o preto vencer
É papel alumínio todo amassado,
Esquenta não mãe é só uma cabeça de alho...
Um índio (Caetano Veloso)
Cartola virá que eu vi,
Tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali
Cantar rap nunca foi pra homem fraco
Saber a hora de parar é pra homem sábio" (Sucrilhos - Criolo)

“Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro
Os punhos e os pulsos cortados
E o resto do meu corpo inteiro
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo” (Flores  - Tony Bellotto / Sérgio Britto / Charles Gavin / Paulo Miklos)

“Solidão é lava
Que cobre tudo
Amargura em minha boca

Sorri seus dentes de chumbo...” (Dança da Solidão - Paulinho da Viola)

“Não me elegeram chefe de nada
O meu cartão de crédito é uma navalha” (Brasil – Cazuza)

“Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa A vida é tão rara...” (Paciência - Lenine e Dudu Falcão)

“A banda cover do Diabo acho que já tá por fora
O mercado tá de olho é no som que Deus criou 
Com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
Mundo inteiro vai pirar com o heavy metal do Senhor” (Heavy Metal Do Senhor - Zeca Baleiro)

“O goleiro é um homem de elástico
Só os dois zagueiros tem a chave do cadeado
Os laterais fecham a defesa
Mas que beleza é uma partida de futebol” (Partida De Futebol - Samuel Rosa e Nando Reis)

“Garotos não resistem
Aos seus mistérios
Garotos nunca dizem não
Garotos como eu
Sempre tão espertos
Perto de uma mulher
São só garotos” (Garotos - Leoni)

“Estátuas e cofres e paredes pintadas
Ninguém sabe q que aconteceu...
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender...” (Pais e Filhos - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)

“Eu posso estar sozinho
Mas eu sei muito bem aonde estou 
Você pode até duvidar
Acho que isso não é amor” (Será - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)

“Pra onde essa onda vai?
De onde essa onda vem?
Eu não sei o que ela me traz
Mas o meu desejo é que me leve também” (Onde Anda a Onda - Paulinho Moska)

Também uso:

“Me diz quanto querer pode existir
Eu sei que vou sofrer, mas fico mesmo assim” (Vou me iludir - Magno Mello / Pedro Morais)

Olha essa que interessante:

“De que ele o sol inunda
O mar quando se põe
Imagem moribunda
De um coração que foi (J. de Deus)

Três de Raul Seixas:

Admito / comigo
Apressado / cigarro
Banquete / gente

As possibilidades são muitas e podem trazer originalidade às rimas.

Arrisque-se! 


Magno Mello