quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Analise da letra de “A Ponte” (Lenine / Lula Queiroga)

A Ponte (Lenine / Lula Queiroga)

Como é que faz pra lavar a roupa? Vai na fonte, vai na fonte
Como é que faz pra raiar o dia? No horizonte, no horizonte
Esse lugar é uma maravilha, mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte

A ponte não é de concreto, não é de ferro, não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir, nem pra voltar, a ponte é somente atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

A ponte nem tem que sair do lugar, aponte pra onde quiser
A ponte é o abraço do braço de mar com a mão da maré
A ponte não é para ir nem pra voltar, a ponte é somente atravessar
Caminhar sobre as águas desse momento

Nagô, Nagô...na Golden Gate

Entreguei-te meu peito jorrando meu leite
Atrás do retrato postal fiz um bilhete, no primeiro avião mandei-te
Coração dilacerado, de lá pra cá sem pernoite
De passaporte rasgado sem ter nada que me ajeite
Coqueiros varam varandas no Empire State,
Aceite minha canção hemisférica, minha voz na voz da América
Cantei-te, amei-te.


Analise da letra de “A Ponte” (Lenine / Lula Queiroga)

Características principais:

Estrutura de idéia central. Mensagem metafórica. Abertura indireta. Narrativa reflexiva. Incursões relacionais. Deconstruções (desconstruções + reconstruções). Jogos de palavras e ou rítmicos. Pergunta e resposta.

1ª estrofe: num jogo de pergunta e resposta os dois primeiros versos aludem, indiretamente, a um determinado lugar. E essa alusão já estabelece pelo menos duas primeiras imagens: alguém (ou pessoas) lavando roupa na fonte e o dia raiando no horizonte . Percebe-se também um jogo rítmico nas respostas: “vai na fonte, vai na fonte” e “no horizonte, no horizonte”. Imagens e jogos rítmicos: dois potenciais causadores de interesse. Devemos ainda considerar a sonoridade e a semântica das palavras que foram ditas, além da métrica dos versos; o que deve ser feito ao longo de todo o texto. E, por fim, podemos analisar a abertura como indireta, pois a temática ainda não é clara.
No terceiro verso o autor fala diretamente sobre um lugar, "esse lugar é uma maravilha". E num bom domínio de síntese emenda o quarto verso questionando como se faz para, caso se queria, sair desse ambiente, que é uma ilha; mais imagens. E mais uma vez com bom poder argumentativo, no próximo verso já aponta o caminho, "pela ponte, pela ponte", terminando a estrofe com mais um jogo rítmico e mais uma imagem. As ideias se desenvolvem rapidamente em poucas palavras e geram muitos signos pelo caminho. Temos na primeira estrofe, portanto, diversos elementos causadores de interesse.

2ª estrofe: o interesse é potencializado pela surpresa da metáfora, que alude a uma ponte cultural, causando uma reversão de expectativas. Até então, possivelmente,  acreditávamos se tratar de uma ponte física. Surge, no entanto, a ideia de uma ponte imaterial, que pode sugerir a força de nossa imaginação, a possibilidade de se vencer fronteiras e barreiras ou, o que é também provável, nos conectar com a ideia da internet, da velocidade e das possibilidades de nossa atual comunicação, do mundo globalizado, do tudo acontecendo ao mesmo tempo agora. Mais uma vez, em poucas palavras, há muitos signos contidos, visíveis ou a serem desvendados, ou mesmo reverberados e multiplicados dentro de nós.

3ª estrofe: o primeiro verso reforça a ideia de uma ponte cultural, que abre um rol de novas formas de se atuar no mundo. Há ainda um pequeno trocadilho entre "a ponte" e "aponte". O uso de trocadilhos é sempre arriscado. Mas neste caso, particularmente considero-o bem utilizado, participa de forma natural do sentido do verso e com ele colabora positivamente.
A segundo verso traz um novo elemento semântico, inaugura um novo ângulo na temática, ao começar a enfocar certo aspecto local atrelado ao global. E é também um interessante distendimento poético: utiliza-se um recurso de imagem alegórica, além de um bom jogo de palavras.
Por fim, repete-se nos dois últimos versos da estrofe os mesmos versos da estrofe anterior, o que tende a reforçar a ideia da letra na cabeça do ouvinte e contribuir para a "forma de letra de música".

4ª estrofe: apesar de a estrofe se parecer mais com um forte ponto de impacto do que propriamente com um refrão (embora seja uma analise subjetiva), chega-se ao ápice do tema com um ótimo domínio de síntese: "Nagô, nagô, na Golden Gate". O verso, ao mesmo tempo que condensa tudo que vinha sendo falado, fortalece ainda mais a identificação com o ouvinte. Nagô somos nós, estendendo nossa atuação no mundo globalizado, aqui, para o bem e para o mal (e cada um tem suas impressões) representado pela Golden Gate, um ícone americano (embora não dos mais representativos de um dito imperialismo). Representando a Golden Gate esse mundo globalizado, e sendo Nagô a representação tupiniquim, não deixa de ser também a imagem do próprio artista, Lenine, ganhando mundo, coisa que perceberemos com mais nitidez na quinta e última estrofe.

5ª estrofe: o autor passa para uma narrativa relacional "entreguei-te meu peito jorrando meu leite...", o que ainda não havia ocorrido no texto. Esse procedimento, geralmente afetivo, tende a reforçar ainda mais a comunicação com o ouvinte. Observa-se também que a linguagem e a métrica ficam mais soltas, o que causa distensionamento.
No segundo verso o autor manda notícias de fora. Nesse momento fica um pouco mais claro que o artista está ganhando mundo. Os dois versos seguintes reforçam a ideia: a alegoria "de passaporte rasgado" pode dizer tanto sobre a trajetória do artista, agora irreversivelmente internacionalizado, como sobre o irreversível processo de globalização. E, de certo modo, as duas coisas podem se misturar.
O antepenúltimo verso, "Coqueiros varam varandas no Empire State", potencializa ainda mais a argumentação, trazendo de um novo ângulo a ideia anterior do regional atrelado ao global, dizendo também sobre o próprio estilo musical do intérprete, o regionalismo misturado a elementos de última geração. O autor é um representante desse movimento. Nota-se ainda o jogo rítmico de palavras e a imagem alegórica, deconstruída, o que mais uma vez causa relaxamento, enquanto se transmitem mensagens significativas.
No penúltimo verso fica ainda mais clara a sutil (ou já não tão sutil) intenção do autor, de vender seu peixe: “Aceite minha canção hemisférica, minha voz na voz da América...”, dito de modo relacional, de um coração para outro, com o auxílio de jogos de palavras, relaxamentos métricos, imagens alegóricas, e, finalmente, no último verso: "cantei-te, amei-te / cantei-te, amei-te", para ficar ainda mais afetiva a proposta e aliviar a possibilidade de o autor parecer prepotente (um interessante jogo de bate e assopra).

Considerações finais: essa letra de canção, na minha opinião muito bem construída, lançou o artista, Lenine, para o Brasil, ainda que para um público segmentado. E conseguiu transmitir várias mensagens de uma só vez: o mundo e suas novas possibilidades. Como as tendências se apresentavam naquele momento, em 2006; e ainda continuam se apresentando. Uma forma de se fazer música: regionalismo atrelado às novas tendências mundiais, utilizando-se de elementos de última geração. A identidade artística do intérprete contida na própria letra, e potencializada pelo tipo de argumentação. A cumplicidade com o ouvinte, que também pode se sentir ali representado.


Magno Mello

4 comentários:

  1. Quando vc fala dessa canção de internacionalização, ao ouvir a versão da acustico MTV, ganha outro centido ?? Tem também a participação do artista Gabriel Pensador.

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  2. Então, errei a participação que eu falei... Corrigindo ... Participacao GOG...

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  3. Meu nome é Daniel. Moro em Varsóvia, na Polônia. Estou usando o seu material para dar uma aula de português para estudantes de nível avançado aqui. Muito bom trabalho. Parabéns.

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