quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Linguagem subjetiva

A linguagem subjetiva em letras de música parece ser um caso moderno, ou melhor, contemporâneo. Até os anos cinquenta não se tem muita notícia, no Brasil ou no mundo, de letras que claramente dependiam da interpretação do ouvinte. Geralmente os autores deixavam transparecer de forma clara suas intenções, que mensagem estavam passando, ainda que com o uso de metáforas.

Na literatura, essa forma de leitura deve-se, em parte, ao aparecimento da narrativa não linear que marca o início da literatura moderna, inaugurada por Gustave Flaubert no romance inacabado “Bouvard e Pecuchét”, 1881.

Um pouco antes disso na França, poetas, pintores, dramaturgos e escritores, influenciados pelo misticismo do pensamento, da arte e de religiões orientais, começam a lançar a base do Simbolismo, outro movimento que colaborou para valorizar ainda mais o ponto de vista do indivíduo em detrimento do senso comum ou do plano geral. Nesse sentido, os simbolistas valorizavam também o inconsciente e o sonho – alguns anos mais tarde começam a surgir as bases da psicanálise, de Freud, o que tende a confirmar que a arte está sempre ligada às manifestações de seu tempo e vice-versa. O grande precursor do movimento, que em 1881 recebe o rótulo pejorativo de Decadentismo, e só em 1886 é nomeado Simbolismo, foi o poeta francês Charles Baudelaire com "As Flores do Mal", de 1857 (Charles Darwin lança, em 1859, "A Origem das Espécies"). Outros grandes expoentes do movimento são Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé.
.
Outro movimento importante para a consolidação da literatura moderna foi o Imagismo, escola estética lançada em 1921 por Ezra Pound que propunha a maior utilização da linguagem coloquial, a despreocupação com a métrica, os versos livres e as imagens: descrever e “pensar” as imagens mais do que compará-las. O objetivo era também libertar a poesia de recursos retóricos como a analogia, o sentimentalismo e o idealismo. Pound propagou as ideias de T. E. Hulme, que dizia que a poesia utilizando-se de imagens e da metáfora teria maiores possibilidades de exprimir o que realmente se desejava.

A literatura moderna é definitivamente instaurada por James Joyce com o surgimento do seu “Ulisses”, em 1922, a partir do emprego de linhas temporais desconexas e formas caleidoscópicas de se contar uma estória. E na poesia, no mesmo ano, o inglês T. S. Eliot lança The Waste Land. Apesar da obra não ter tido grande repercussão à época, apresenta mudanças abruptas de narração, localidade e tempo. Todos esses fatores reunidos colaboraram para o estabelecimento da linguagem subjetiva. 

Voltando ao caso específico de letras de música o fenômeno parece coincidir com a contracultura americana, com a urgência em se desconstruir a ordem vigente, com o crescimento do individualismo e com a era da informação e seus conteúdos em "pílulas" e hipertextuais.

Temos, portanto, um novo cenário em que não apenas uma letra de música, mas outros tipos de textos, em prosa e verso - muitos deles para cinema, televisão e mídias eletrônicas - podem ser também um mosaico de informações a partir de colagens de palavras, de frases, de sentidos e até de temas.

Vejamos o seguinte exemplo:

Todo Carnaval Tem Seu Fim (Marcelo Camelo)

Todo dia um ninguém José acorda já deitado
Todo dia, ainda de pé, o Zé dorme acordado
Todo dia o dia não quer raiar o sol do dia
Toda trilha é andada com a fé de quem crê no ditado
De que o dia insiste em nascer
Mas o dia insiste em nascer pra ver deitar o novo

Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada
Toda bossa é nova e você não liga se é usada
Todo o carnaval tem seu fim
Todo o carnaval tem seu fim
E é o fim
E é o fim

Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !
Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz

Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco?
Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco
Toda escolha é feita por quem acorda já deitado
Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado
E pinta o estandarte de azul
E põe suas estrelas no azul
Pra que mudar?


Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !
Deixa eu brincar de ser feliz, deixa eu pintar o meu nariz !


O que diz o texto? Fala de algo bom ou ruim? Uns acham a mensagem positiva, outros totalmente o contrário. E você, o que acha? Dá para se entender claramente o que está sendo falado? Dificilmente. Até porque a intenção não parece ser essa. Mas mesmo não se sabendo exatamente o que significam todas essas frases agrupadas, há um conteúdo abstrato, intuitivamente compreensível, em pinceladas, que pode ser lido de várias maneiras. E o mais importante: há muitas indicações de caminhos e muitas portas de entrada e saída. É, ainda, um outro modo, menos linear - e muitas vezes não linear - de se concatenar ideias.

Gostando ou não dessa forma de se escrever, o fato é que ela existe, é hoje utilizada por muita gente e parece que veio para ficar, não em detrimento das formas mais tradicionais ou explícitas, mas como um jeito outro de se expressar.

Magno Mello 

Nenhum comentário:

Postar um comentário