segunda-feira, 20 de março de 2017

Métrica

Métrica

(Trecho extraído do estudo "Uma Poética Musical - o universo das letras de música" - Magno Mello)

Um texto muitas vezes começa pelo ritmo, pela métrica que nos alcança, vinda não se sabe de onde, mas exigindo palavras. As palavras, por sua vez, em princípio ilhas de sonoridade, passam a exigir sentidos. Pois é dessa maneira que também se iniciam livros, poemas, crônicas, letras de canção e até relatórios.

Este é, portanto, um fenômeno estético, quase uma sensação física, essa dança de pré-palavras vindas de um lugar desconhecido que muitas vezes entendemos como inspiração, e alguns pesquisadores da criatividade entendem como pré-disposição a combinações aleatórias até que algo faça sentido. Mas seja qual for o caso, é importante que saibamos: é possível alimentar, enriquecer, potencializar esse "lugar" com elementos e percepções rítmicas, assim como com outros tantos elementos que participam da criação textual. O que, sem dúvida, só fará aumentar nossa capacidade criativa.

Podemos dizer, num certo sentido, que o ritmo contém a métrica, inicia-se nela, mas a ultrapassa. Especialmente nos casos de textos em prosa, quando essa métrica perde quase toda sua visibilidade estrutural e se torna a própria respiração do texto, dessa forma influenciando em alto grau a comunicabilidade e a atratividade do que é escrito. Estando o ritmo num texto de algum modo empobrecido ou acidentado, perde-se muito a qualidade do que é dito.

Para os dois casos, tanto de se iniciar um texto por influência do ritmo, como se ter domínio desse ritmo para melhor comunicar um enunciado, a percepção e a absorção de métricas de letras de música são maneiras lúdicas, sensíveis e afetivas de se potencializar essas capacidades. Isso porque, além desse gênero textual ser passível de mapeamento quanto à sua métrica, apresenta não apenas incontáveis exemplos das mais variadas metricidades, mas ainda de momentos em que a métrica, visível, vai se transformando em ritmo, já algo invisível aos olhos, mas perceptível ao senso estético, e mesmo ao entendimento físico quanto a fluidez e as nuances de respiração do texto.

Com letras de música é possível até se contar "histórias métricas", de forma lúdica e divertida. Essa brincadeira pode ser feita isolando-se a métrica do texto, retirando as palavras, mas ainda mantendo a parte rítmica. E depois comunicar essa rítmica oralmente, mas com o uso de somente uma única sílaba escolhida, de preferência uma sílaba de ”ataque", por exemplo, um "Tá". Ou seja, um "Tá" substituindo cada sílaba (ou sílaba melódica* - ver mais à frente). Além de neste caso se ter a visualização apenas da métrica contida no texto, em cada verso, em cada estrofe e na estrutura do texto como um todo, a brincadeira ainda se estende para um jogo de inflexão sonora. Uma simples brincadeira como essa enriquece nossa visão rítmica sobre um texto, seja ele qual for.

Pois é essa noção, que compreende e percebe, estética e fisicamente, a métrica e o ritmo, que se há também de desenvolver no indivíduo produtor de escrita. Esses elementos, além do elemento sonoro, são os pilares da escrita e da própria fala, antes de qualquer proposição semântica, antes de qualquer construção gramatical, e antes até da palavra, pois o som e o ritmo são anteriores à própria linguagem falada, e, de muitos modos, base para sua existência; que se pense numa criança aprendendo a falar ou em nossos ancestrais inventando as primeiras palavras. Sem esses elementos, portanto, não há argumento que bem se sustente, também por ser o indivíduo humano esse complexo, pragmático e lógico, mas não menos lúdico e sensível, receptor e comunicador de informações. A própria linguagem é uma construção lúdica, emocional e, mais que isso, jamais está pronta. É sempre, e está sempre, por ser reinaugurada em si mesma, com isso inventando, reorganizando e redimensionando novos sentidos e desejos, novas visões e cognições, novos mundos, dentro e fora de nós. E, assim como seus enunciados semânticos e suas construções gramaticais e estéticas, suas possibilidades rítmicas são infinitas.

Se é verdade que a métrica e o ritmo têm esse papel sedutor, uma vez que se potencialize tal sensibilidade no indivíduo, certamente haverá nisso contribuição para a formação de mais leitores. Ou seja, o ritmo se torna um elemento a mais para aproximar esse indivíduo da leitura.

A métrica nas letras de canções

Imaginemos que por trás de uma letra de música há uma melodia. Seguindo a mesma lógica, vem a pergunta: o que há por trás da melodia? A resposta é: métrica ou rítmica da melodia.

Muitas vezes, ao fazer uma letra ou melodia não nos atentamos para a qualidade de sua métrica. Percebemos a métrica, sabemos que lá está, ainda que de modo inconsciente. Mas poucas vezes paramos para observar sua qualidade, se possui uma rítmica interessante, se carrega algum valor semântico, se é mais ou menos previsível, o quanto varia de uma estrofe para outra, de um verso para outro, ou o quanto pode ser melhorada.

Mas mesmo que o ouvinte não se dê conta, a métrica é também um elemento causador de interesse ou desinteresse. Sempre estará impressa numa letra. E sempre será ouvida e assimilada, de forma mais, ou menos, consciente.

Vejamos esta conhecida cantiga de roda:

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

“Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to não morreu-reu-reu,
Dona Chica-ca admirou-se-se, do berro, do berro que o gato deu”

Agora vejamos a sua métrica. Para que a compreensão fique ao alcance de todos evitaremos o uso de partitura e representaremos cada sílaba com uma letra T (apenas uma consoante com bom apelo rítmico), sendo que cada sílaba representa uma nota musical.

Sílaba melódica*

Geralmente, cada nota musical contém uma sílaba. Mas, no caso da canção há ainda a sílaba melódica. por exemplo: "tu és di-vi-nae-gra-ci-o-saes-tá-tua ma-jes-to-ja...". Isso quer dizer que uma nota musical pode conter fragmentos de outra sílaba ou mais de uma sílaba. Pois consideremos também essa possibilidade.

E há, por fim, o caso dos glissandos, quando uma sílaba pode valer por duas ou mais notas musicais. Ex: Eu vi ̮ i
                                              T   T  T

No exemplo acima há três notas, embora apenas duas sílabas, sendo a última nota um fragmento do verbo utilizado.

Voltando à nossa canção, a métrica em "T" ficaria assim (cante devagar e acompanhe cada T junto a cada sílaba/nota):

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

A   ti rei o pau no ga to to
T   T T   T T      T T    T  T
mas o ga   to to  não mo rreu  reu reu
  T   T  T    T T      T   T   T        T T
do na Chi   ca ca   ad mi rou  se se
  T  T  T       T T      T  T  T      T T
do be rro  do be rro   que ̮o ga to deu
  T  T  T     T  T  T          T   T  T  T

Agora podemos suprimir as sílabas. Veja como fica nosso mapa métrico:

(Atirei o Pau no Gato - autor desconhecido)

T  TT  TT  TT  T  T
TTT  TT  TTT  TT
TTT  TT  TTT  TT
TTT  TTT  TTTT

Ficou clara a ideia? Cada T corresponde a uma nota musical. E, quase sempre, salvo nos casos já citados, corresponde a uma sílaba. Percebemos aí que se trata de uma métrica simples, comum, bastante previsível e repetitiva, como geralmente convém a uma cantiga de roda. Só o motivo TTT  TT se repete quatro vezes seguidas. E a duração de cada sílaba, ou nota, é quase sempre a mesma. É um caso de pouquíssima variação. Esse tipo de métrica colocada em uma canção “adulta” poderia soar pobre, o que possivelmente despertaria pouco interesse, podendo ainda prejudicar a sonoridade da canção e a transmissão da mensagem ou da ideia.

Vejamos agora outro caso:


A novidade veio dar a praia
Na qualidade rara de sereia
Metade o busto de uma deusa maia
Metade um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo escondido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Oh... mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
O, o, o, o,    o  o
Oh... de um lado esse carnaval
De outro a fome total
O, o, o, o,   o   o
E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia
A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado
Oh... Mundo tão desigual...

Faremos a seguir o mapa métrico desta canção. Para isso, dividiremos a letra em partes: Intro (introdução), A (parte A), B (parte B) e Refrão”.

A Novidade (Gilberto Gil) – Mapa Métrico

Intro (em onomatopéias)

T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah
T   T   T   T     T  T  T      T  T
Uh uh uh uh   uh uh uh   ah ah

Parte A

T  T    T T     T T     T  T     T  T  T
A no  vi da  de vei  o dar  na prai a
 T  T    T T    T  T    T  T     T  T  T
na qua li da  de ra   ra de  se rei a
 T  T     T   T      T  T       T   T       T  T  T
me ta  de ̮o bus to de ̮u ma deu  sa mai a
  T  T       T   T        T   T     T   T      T  T  T
 me ta de ̮um gran  de ra   bo de     ba lei a
  
Parte B

T  T    T  T      T   T        T  T  T
A no  vi da  de ̮e ra ̮o   má xi mo
T  T     T T    T  T      T  T  T       T   T   T
Do pa ra do xo es   con di do  na ̮a rei a
 T  T      T T    T  T       T   T  T         T  T  T
Al guns a de  se jar  seus bei jos   de deu sa
   T  T    T  T    T  T     T   T   T       T   T  T
 Ou tros a de   se jar  seu ra bo    pra cei a

Refrão

T          T   T     T     T   T   T
Oh...  mun do  tão   de si gual
T    T      T      T   T   T
Tu do ̮é  tão    de si  gual
T       T       T      T    T        T
Uou, uou, uou, uou, uou    uou
T          T      T    T     T      T   T  T
Oh... de ̮um la  do ̮e sse  car na val
T    T     T      T    T   T  T
De ou  tro ̮a  fo  me  to  tal
T       T       T      T    T        T
Uou, uou, uou, uou, uou    uou

A partir de agora, tendo bem claro o funcionamento do modelo, não precisamos sequer adicionar a letra da música, apenas os "Ts". *Lembrando que é sempre mais fácil utilizarmos canções por nós já conhecidas. Ou mesmo nossas próprias criações. E o mapa métrico, dependendo do caso, pode também servir para a análise de métricas em poemas.

A Novidade (Gilberto Gil) – Mapa Métrico

Intro (em onomatopéias)

TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 
TTTT  TTT  TT 

Parte A

TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TT  TTT

Parte B

TT  TT  TT  TTT
TT  TT  TT  TTT  TTT
TT  TT  TT  TTT  T TT
TT  TT  TT  TTT  T TT

Refrão

T   T T  T  T T T
T T  T  T T T
TTTT T  T

T  T T  T T  T T T
T  T  T  T T T
TTTT T  T

Este é apenas um modelo simples para se fazer o mapeamento métrico. Pode haver outras formas mais elaboradas, ou com o uso da partitura, o que fica a critério de cada um.

Análise do mapa métrico

- Percebemos que na estrofe de introdução, onomatopaica, a métrica se repete nos quatro versos. O mesmo acontece na parte A. Mas a métrica da Intro já é diferente da métrica do A.

- Temos ao longo da letra dez variações métricas. Há, portanto, mudanças constantes e os padrões rítmicos já soam bem mais complexos e imprevisíveis que no exemplo de "Atirei o pau no gato". Esse movimento, geralmente, é importante para trazer à letra e ao ouvinte novos causadores de interesse, por menos aparentes que sejam à primeira vista. No caso da canção apresentada, muitas dessas mudanças se dão nas passagens de uma parte para outra. Mas na parte B já há alguma variação, especialmente entre o primeiro verso e os outros três.

- Vimos também que a métrica desdobra-se no refrão, ou seja, as notas se alongam, têm maior duração. E diminui o número de palavras por compasso. Esse fenômeno é recorrente em refrões, geralmente mais sintéticos que o restante da letra. Isso acontece em cerca de 70% dos refrões. Mas não é regra e nem deve ser.

Eis um exemplo contrário. Neste refrão o número de palavras por compasso aumenta significativamente em relação ao restante da letra:

Manguetown - trecho (Chico Science/Lucio Maia/ Dengue)

A
Estou enfiado na lama.
É um bairro sujo.
Onde os urubus tem casas.
E eu não tenho asas.
Mas estou aqui em minha casa
Onde os urubus têm asas
Vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal
Manguetown

Refrão

Andando por entre os becos / Andando em coletivos.
Ninguém foge a cheiro sujo / Da lama da manguetown
Andando por entre os becos / Andando em coletivos
Ninguém foge a vida suja / Dos dias da manguetown

Vimos que uma boa letra de canção geralmente apresenta algumas ou muitas variações métricas, entre as estrofes ou dentro das próprias estrofes. Mas como nas artes regras são apenas indicadores de caminhos e jamais verdades absolutas, é sempre possível subvertê-las e ainda assim obter ótimos resultados. Vejamos um caso contrário aos anteriores e nem por isso menos feliz:


“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou prá descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego...

Quantas variações métricas temos nessa canção? Nenhuma. Há apenas uma única métrica, que se repete algumas dezenas de vezes ao longo de toda a letra.

Mapa métrico de "Construção"

TT  TTTT  TTTT  T  T  TT (a mesma métrica em todos os versos)

Há aí, porém, um fenômeno incomum. Essa métrica, por si, carrega um elemento semântico, possui significado: sugere algo mecânico, repetitivo, meio “robotizado”, alienado, que é exatamente o que diz a letra: a insatisfação gerada pela vida operária, pelo trabalho repetitivo, não criativo, pelo cotidiano que esmaga a subjetividade. É um caso raro, mas que evidencia ainda mais a importância da métrica por trás da melodia ou do verso.

Outro exemplo parecido se dá neste próximo caso:


Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?
Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluido em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração
Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado.
Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer:
Reinstalar o sistema

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste e viva

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga...

Não senhor, Sim senhor, Não senhor, Sim senhor

No ponto em negrito acontece algo semelhante ao caso de Construção: métrica "robotizada", mecanizada, ao se tratar de assunto afim.

Mapa métrico - dicas

1 - Para se fazer mapas métricos sem o uso da partitura é importante que se escolham canções conhecidas, para que a organização em “Ts” faça mais sentido na hora da leitura. O que não impede de se analisar letras ou poemas desconhecidos.

2 - Fazendo mapas métricos de, pelo menos, dez canções, a qualidade da métrica de sua letra de canção ou de seu poema, ou mesmo do ritmo de seu texto em prosa, tende a aumentar significativamente. E, sem dúvida, aumenta também sua atenção para o fenômeno.

3 - Um mapa métrico pode ser feito de memória, enquanto se está no ônibus ou no metrô, por exemplo. Basta pegar uma canção conhecida e analisar mentalmente, estrofe por estrofe. E depois a relação entre as estrofes. Uma boa métrica fortalece sua melodia. E um bom ritmo fortalece seu texto.




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